Horizontes Internos
2019
Texto Curatorial
HORIZONTES INTERNOS – Fotografias
“Vi-me ao fechar os olhos: espaço, espaço
onde estou e não estou.”
Octavio Paz
Um olhar desatento poderia concluir que o assunto das fotógrafas Marcia Gadioli, Rosa Esteves e Vera Albuquerque é a arquitetura de outro tempo – registros de realidades que já não existem, mas que, no presente, permitem experiências estéticas atemporais.
Marcia acompanhou a derrubada das casas que desenharam o horizonte de sua juventude e a inevitável eclosão de condomínios verticais. Suas Paisagens granuladas colocam os maciços formados pelos novos prédios fora de foco, como se resistisse a enxergá-los. A série Entre mostra uma vida em ruínas – paredes descascadas, restos de azulejo, escadas que não sobem ou descem e portões que não conduzem a lugar algum – ambientes revisitados por uma memória afetiva que a fotografia deixa adivinhar. Ela usa a luz e a proximidade da câmera para compartilhar a intimidade de materiais antes conhecidos também pelo olfato e pelo tato. Em Intermeio ela acompanha a transformação de um velho sobrado em seu novo local de trabalho. Na escavação arqueológica desses espaços, a mão que fotografa também dirige a entrega final das imagens. Papéis escolhidos para as ampliações mimetizam a textura de paredes, a superfície úmida do cimento, a secura das madeiras. A fotografia colorida de Marcia, de natureza matérica, é quase pintura.
Rosa produz fotografias que aproximam distâncias. Ela ultrapassa a realidade, colocando em uma mesma imagem construções de diferentes lugares. Recortando e colando esses mundos distintos, ela produz caleidoscópios oníricos que subvertem as representações exteriores. As arquiteturas são deformadas, erguidas com angulações que costumam frequentar mais os sonhos do que a realidade – como nos cenários dos filmes expressionistas.
É dessa forma que ela lida com as emoções perturbadoras da infância, experimentadas em certa casa escura, de grossos cortinados e janelas fechadas. Nesse ambiente sombrio vivia uma tia distante, internada várias vezes como louca. Para exorcizar essa assombração, a que a imaginação infantil deu contornos desmedidos, surgiu a série A casa de minha tia. Rosa se vale da experiência de gravadora para conseguir efeitos teatrais no uso das luzes e sombras, e sublinha a escuridão entintando com um negro profundo a matriz de seus persistentes pesadelos.
Percorrendo as ruínas da Fábrica Matarazzo e do Moinho Central, Vera fotografa o que restou desses antigos marcos da São Paulo fabril. Nesse caminhar ela vai contando outra história, cujo roteiro se alimenta mais de poesia do que da inóspita e gasta vida real. Chaminés, galpões e silos, antes integrados ao progresso pela estrada de ferro, estão agora invadidos pelo mato e por seres marginais que ali vivem como sombras sorrateiras. Vera descobre seu assunto nessa vegetação comum que renasce teimosa e desregrada e também observa a vida que se esconde nas frestas, improvisando espaços de sobrevivência. Essas existências subterrâneas se insinuam na escrita indecifrável das pichações, roupas abandonadas e fuligem dos fogões improvisados. Poças ampliam os espaços e é só no reflexo desses espelhos de água que os esqueletos de concreto recuperam a antiga grandeza cênica. Esse mundo duplicado de cabeça para baixo mostra que Vera é seduzida mais pelas contradições do que pelas certezas, que ela privilegia os enigmas mais do que as verdades aparentes. A luz, instrumento da profissão, revela as sutilezas e meios tons desse mundo opaco. Pelo buraco da chaminé, o olho, como a câmera fotográfica, se concentra no recorte vazio que ela selecionou do mundo – “espaço onde estou e não estou”.
As três fotógrafas têm em comum o foco dirigido para os temas urbanos, mas os sessenta e cinco trabalhos aqui expostos são escolhas de significados íntimos – são interiores mais do que exteriores.
Vera d’Horta, curadora